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Paulo Mendes Pinto
Paulo Mendes Pinto, diretor geral académico Lusófona Brasil (Fonte Divulgação)

Anões aos ombros de gigantes

Por: Paulo Mendes Pinto, diretor geral académico Lusófona Brasil


Ou como marcas e legitimidades se constroem nas culturas e nas línguas antigas

Por mais que definamos a inovação como o motor do desenvolvimento, raramente os nossos agentes, de uma e de outra, param para pensar nas formas mais eficazes de conjugar ambas. Inovar não é simplesmente fazer diferente, nem o que se faz diferente alavanca ou cria, necessariamente, desenvolvimento. Para que aquilo que é novo seja aceite, tem de ter características muito específicas, que vão da necessidade do que é apresentado, à forma como a sociedade representa esse produto ou serviço.

E no campo da aceitação, há metodologias que obviam os processos e, acima de tudo, nos remetem para horizontes de adesão inconsciente. Mecanismos de validação que vão aos cantos mais escusos da memória coletiva encaixar aquilo que hoje se quer “vender”. São complexos estes processos e, acima de tudo, nada consensuais na análise das razões que levam a que aconteça mas, a verdade, é que acontecem. Temos uma capacidade inata de bem acolher estímulos do campo das nossas memórias coletivas mais ancestrais. Se as sagas épicas em torno da recriação dos mundos mitológicos são a prova mais imediata, o mundo do conhecimento e, até, das marcas, não fica atrás.

No campo dos saberes, quase todos os ramos da Ciência necessitam, para se legitimarem, de ir buscar (ou melhor, rebuscar) uma origem à Antiguidade. Para os geógrafos é, entre outros, Estrabão; para os historiadores é Heródoto; para os médicos é Hipócrates, etc, etc, etc. Qual a semelhança entre o métier desses pais originais e o dos seus discípulos actuais? Regra geral, nenhuma. Trata-se de um símbolo de paternidade, uma marca de nobilitação, um discurso muitas vezes próximo ao campo do mito.

Talvez a actividade de Hipócrates tenha pouco a ver com a dos clínicos actuais, mas a verdade é que boa parte dos produtos farmacêuticos actuais foi buscar nome a raízes directas do grego clássico. Essa opção torna mais fácil a percepção, por parte dos médicos, farmacêuticos ou doentes, do campo de eficácia do produto? Não, em princípio só os cidadãos gregos perceberão que, por exemplo, o Atarax (ansiolítico, sedativo, hipnótico e anti-histamínico), faz apelo à ataraxia, uma espécie de estado idêntico ao nirvana que os gregos atingiam com algumas drogas.

Mas é todo o nosso dia-a-dia que vai buscar referências imperceptíveis a esse horizonte. Sem se dar por isso, andamos a soletrar verdadeiras frases em grego, latim, hebraico e, até, egípcio!
Haveria nome melhor para uma marca de produtos desportivos que “Vencer” (em grego niké)? E uma linha de produtos de beleza que fosse “A Beleza” (no grego to kálon)? E os eletrodomésticos que são “O Melhor (lutador)” (em grego aríston)? E porque não referir a marca de produtos didácticos e pedagógicos que é “Eu li” (Lego, em latim)?

De facto, até o perdido egípcio hieroglífico, só decifrado no segundo quartel de oitocentos, deu nome a automóveis: o Opel Ká foi buscar o dito «ká» à palavra egípcia que designava uma das vertentes não materiais do corpo humano: um verdadeiro, como a publicidade dizia, “carro com alma”. Mas o mundo automóvel está repleto de referências à Antiguidade: do Clio (musa latina da história) ao Megane (superlativo de mega, grande em grego), muito mais se poderia referir. E por falar em «grande», também a relojoaria não ficou imune a este vocábulo usando-o para uma das suas principais marcas, a Omega, a última letra do alfabeto grego, significando o “fim”.

Mais se poderia acrescentar. Quando ouvimos falar na Nissan, estamos a recordar um mês do calendário semita antigo; quando compramos as pastilhas da Adam’s, dizemos o nome do primeiro homem da criação divina.

Enfim, “o mito é o nada que é tudo”, nas palavras de Pessoa. Não tivesse sido debaixo de uma macieira que Newton teve a ideia da Lei da Gravitação Universal … no fundo, a árvore que na leitura medieval e moderna da tradição judaica era a Árvore do Conhecimento que estava no Éden… Nunca poderia ter sido debaixo de uma figueira!