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Cristina Vaz de Almeida, presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS) (Foto: Divulgação)

“Humanizamos quando tornamos o outro significativo”- Cristina Vaz de Almeida

Por: Marta Godinho

A Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS) é uma associação dotada de personalidade jurídica sem fins lucrativos, de caráter científico e formativo que prossegue fins científicos, formativos, técnicos, organizativos, éticos e humanos na promoção, desenvolvimento e aperfeiçoamento da prática da literacia em saúde. Em entrevista à PME Magazine, Cristina Vaz de Almeida, presidente da SPLS, fala-nos sobre as sugestões e críticas da organização feitas à Comissão Europeia, a importância das noções humanísticas para o melhoramento das relações civis na sociedade e fatores como a mudança, humanização e saúde mental.

De acordo com a presidente, “é preciso fazer um esforço pelo construtivo, pela resolução de problemas (não afastar o problema, mas que ele não seja o foco)”.

PME Magazine (PME Mag.) – Que necessidade existiu por parte da SPLS em sugerir o incentivo das competências humanas junto da Comissão Europeia?

Cristina Vaz de Almeida (C. V. A.) – A mobilização das pessoas para as atividades profissionais está sujeita a maiores fatores de motivação do que para as atividades pessoais, de benefício individual que geralmente desenvolvemos. A automotivação intrínseca pressupõe disponibilidade emocional. A Comissão Europeia propõe o desenvolvimento de um conjunto de competências profissionais e tecnológicas que, à partida, são importantes, mas não causais diretamente para a mudança de comportamento intrínseco se a pessoa que o desenvolve estiver a passar uma fase, temporária ou não, de insatisfação com a vida, com ansiedade, stress ou mesmo depressão. Sentimos uma necessidade de alertar para o incentivo das competências humanas para que as competências psicológicas, emocionais e afetivas sirvam de base ao restante desenvolvimento cognitivo, tal como já alertou António Damásio nos seus vários livros.

PME Mag. – O que é que falta a um documento como o da instituição europeia para nos tornarmos melhores cidadãos?

C. V. A. – A começar pela necessária clareza do documento e a segmentação dos seus públicos-alvo, ao longo do ciclo de vida. Quando incentivamos o desenvolvimento de competências tecnológicas, analíticas ou técnicas de uma forma transversal a todo o cidadão, supostamente com mais de 18 anos, a linguagem deve ser diferenciada ao longo do ciclo de vida. Não comunicamos para pessoas de 18 anos da mesma forma que comunicamos para pessoas de 55 anos. Esta uniformização de comunicação acaba por não surtir resultado de mudança. Existem as grandes linhas de títulos que as pessoas até leem na sua descodificação imediata (porque sabem ler), mas depois o efeito de inferência sobre o que está escrito e as ações concretas que são solicitadas a este cidadão anónimo não acontecem e fica toda esta informação como que num limbo de disponibilidade, quase académica, mas com poucos resultados práticos. Levar à ação é essencial. Mas para levar à ação é preciso ir à mente e ao coração de quem deve ser sensibilizado para a mudança. Por outro lado, também vivemos de imagens, e a nossa memória visual exige imagens e elementos audiovisuais. A maioria destes documentos peca por ser um repositório de palavras, sem apelos gráficos, sem imagens, sem destaques que ajudem a leitura e, por isso, a falha também passa pela forma, além do conteúdo. O papel dos media é importante para desconstruir um documento complexo, como os que são aqueles apresentados pelo Parlamento Europeu ou Comissão Europeia.

“Para levar à ação é preciso ir à mente e ao coração de quem deve ser sensibilizado para a mudança”

PME Mag. – Qual é o conceito intrínseco ao Ano Europeu das Competências?

C. V. A. – Parece-nos que o conceito intrínseco de competências, que é um verdadeiro constructo e que passa por conhecimento (saber), capacidade (fazer) e atributos pessoais (o ser), foi esquecido, valorizando-se essencialmente a competência técnica formativa para as aprendizagens do trabalho. O conceito intrínseco seria mais bem abordado se existisse uma reflexão antecipatória e mais valorativa sobre o significado deste importante constructo. A presidente Ursula Von Der Leyen identificou uma “mão de obra com as competências certas”, e esta própria designação que refere acaba por se limitar ao puro âmbito laboral, de competitividade e produtividade do trabalhador, visto como elemento de um processo quase mecanizado de resultados necessários — ao invés da pessoa, como elemento produtor essencial do crescimento e desenvolvimento de uma obra. Ora, o significado do termo “competências” inclui um investimento na pessoa, especificamente quanto à importância do desenvolvimento dos seus atributos pessoais, para além da sua profissão ou competição no mundo do trabalho. Não se consegue mudar alguém que não queira ser mudado ou que não se sinta motivado para o fazer. Lemos as histórias dos “grandes resignados”, de pessoas, sobretudo jovens, que não sentem o apelo para o trabalho mais do que x horas ou de determinada produção e conseguimos vislumbrar as questões que estão por detrás destas atitudes e comportamentos, que não se prendem somente pelo salário adequado à função. Não se muda também sem grandes lideranças motivacionais e atentas aos perfis individuais.

PME Mag. – As noções mais humanísticas estão a perder valor para as competências laborais e profissionais?

C. V. A. – Apesar de se falar muito de saúde mental, da necessidade das equipas estarem motivadas, da felicidade no trabalho — já existem empresas com gestores de felicidade no trabalho —, o certo é que o debate sobre a felicidade, a satisfação e a motivação para a vida tem ainda sido escasso. O que impulsiona verdadeiramente os jovens ao trabalho? O que os faz mover e desenvolver competências? O que podemos auscultar de profissionais há longos anos nas mesmas funções? São ouvidos? São reutilizadas efetivamente as suas propostas? Há o culto da implementação das boas práticas apresentadas pelos trabalhadores nas empresas? Em 2021, uma grande consultora alertava para a necessidade de se desenvolver a resiliência, a humanização através da participação, das pessoas que devem ser ouvidas no local de trabalho, no desenvolvimento do humor, das parcerias internas, para além das competências tecnológicas. E essa avaliação tem mesmo de ser efetuada para que se consigam pessoas empenhadas e mais dedicadas a causas. A vida pessoal pode equilibrar o trabalho ou vice-versa, mas é suposto haver esforços para o equilíbrio em ambos: afinal a pessoa é a mesma.

PME Mag. – Quais são os passos a seguir de forma a “humanizar” a humanidade?

C. V. A. – Como humanizar a humanidade, apesar da redundância, é uma pergunta muito profunda e de grande reflexão deontológica e ética. Mais do que perguntar o que estamos a fazer nas organizações para que as pessoas se sintam tão desmotivadas, devemos perguntar o que as sociedades e políticas públicas estão a fazer para tornar seres humanos tão desvinculados. As questões têm início antes mesmo do próprio trabalho. Todas as crianças aprendem por modelação, por cópia de exemplos que lhe são dados. Se dissermos que estão mal, eles vão sentir-se mal. Se lhes dissermos que a vida não tem sentido, que não há esperança, provavelmente vão assimilar a desesperança. Penso que é preciso fazer um esforço pelo construtivo, pela resolução de problemas (não afastar o problema, mas que ele não seja o foco), e que aqui, tanto as competências parentais como as dos professores, são essenciais serem revistas. A investigação da academia deve também fazer um esforço por ensinar e mostrar o bem-estar. Destaco a última conferência de Promoção da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2021: podemos estar doentes, mas se tivermos bem-estar, tudo se ultrapassa mais facilmente. E não é apenas a doença física. Humanizamos quando tornamos o outro significativo, central na nossa intervenção, adequando a nossa linguagem e ação ao perfil físico, psicológico e social do outro. Humanizamos quando integramos, quando perguntamos de forma aberta “o que posso fazer mais por si?”. E isto também é o caminho da literacia em saúde que tanto defendo. Uma intervenção que ajude as pessoas a aceder, compreender e, sobretudo, a usar os recursos para ter mais saúde. A conexão social é um dos fatores mais importantes na relação humana contra a ansiedade, stress ou depressão. E quanto mais a idade avança, maior é essa necessidade de conexão social. No relatório sobre a pobreza do Observatório Nacional da Pobreza, de 2022, algumas das pessoas que estão em risco de ser mais pobres são as mais velhas, aquelas que vivem sós e as que são migrantes. Não basta dizer, como no relatório do Parlamento Europeu sobre o Ano Europeu das Competências, que “70% das empresas referem a falta de pessoal com competências digitais adequadas como um obstáculo ao investimento, e quase metade da população da UE não possui competências digitais ou tem um nível muito baixo de literacia digital”. É verdade e é um facto. Mas o obstáculo ao investimento também passa pela inércia destas mesmas empresas em valorizar os seus recursos dentro das próprias organizações, motivando-as e preparando-as para estes desafios.

“O sucesso e a realização pessoal pela tarefa feita geram mais incentivo pelos resultados futuros”

PME Mag. – Sente que a mudança deveria prosperar num sentido de maior felicidade e não em maior produção e investimento laboral?

C. V. A. – A felicidade é que gera o sucesso, de acordo com tantos pensadores, e acredito que se nos sentimos mais felizes, então temos uma necessidade maior de demonstrar a nossa autoeficácia em relação aquilo que nos é solicitado no dia a dia, mesmo nas funções laborais. E a autoeficácia realizada com satisfação gera mais autoeficácia, isto é, o sucesso e a realização pessoal pela tarefa feita geram mais incentivo pelos resultados futuros. O trabalho deve trazer alegria, empenho, produtividade. No entanto, se a pessoa não estiver integrada, motivada, preparada, sentir que não tem uma voz, essa chama vai-se apagando ou mantém-se pelo receio de perder o trabalho, de não a incomodarem ou de querer chegar ao final do dia, na hora certa, e sair a correr.

PME Mag. – Acredita que o futuro da humanidade, em diversos fatores, está dependente da construção do processo de humanização da humanidade?

C. V. A. – Sim, acredito. Acredito que o ser humano quando aprende a importância da solidariedade e da compaixão pelo outro consegue muito mais retorno da sua vida com o outro e torna-se um melhor cidadão. Se se torna melhor cidadão, naturalmente a sua competência para o trabalho é exponenciada positivamente num ciclo mais gracioso de sucesso.

“Contribuir para construir personalidades mais construtivas requer que se mude o paradigma de linguagem”

PME Mag. – Por fim, sente que a saúde mental é um dos fatores que se deve ter cada vez mais em conta neste 2023 e em diante?

C. V. A. – A saúde mental é um dos parâmetros da saúde biopsicossocial. Investir nos mais jovens, desde a mais tenra idade, com políticas construtivas, de promoção da saúde, numa perspetiva holística que tem em conta todos os determinantes da saúde e do bem-estar, de apoio às competências parentais e à educação resultará em estados anímicos mais construtivos. Contribuir para construir personalidades mais construtivas requer que se mude o paradigma de linguagem, do “não posso”, “não sei”, “não escolho” para o “posso”, “quero saber mais”, “quero ser eu a escolher”. Este caminho é, de facto, o da autonomização, do verdadeiro desenvolvimento de competências em toda a sua profunda dimensão humana para que depois, sim, trabalhe melhor quando chegar a altura de o fazer.