Por: Elsa Veloso, advogada especialista em privacidade e proteção de dados, CEO da DPO Consulting
Foi recentemente aprovada a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era digital. O ímpeto da Carta radica na democratização do acesso à internet e na construção de um ambiente digital saudável, com salvaguarda dos direitos e liberdades dos titulares que usam os serviços digitais.
Posso dizer que esta Carta fazia falta. O meio digital tornou-se o principal caminho da movimentação do mundo, acabou por ganhar terreno e assumir-se como um meio complementar, mas predominante na realização das nossas tarefas do dia a dia, sejam profissionais, pessoais ou de lazer.
Mas será que estamos apenas perante uma singela e inocente carta dos direitos e liberdades dos cidadãos, dos meios de comunicação e instrumentos digitais?
A Carta consagra no disposto no art.º 6.º o Direito à Proteção Contra a Desinformação. Este direito enquadra-se no Plano Europeu de Ação Contra a Desinformação para proteção de pessoas singulares ou coletivas, com a chancela da Comissão Europeia, quanto a casos de reprodução ou difusão de narrativas consideradas como desinformação.
Segundo a definição na mesma Carta, considera-se desinformação “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora, criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e aos bens públicos.”
Além de prever a apresentação de queixas junto da Entidade Reguladora competente nos termos do disposto no art.º 21.º da Lei 53/2005, de 8 de novembro, relativamente aos procedimentos de queixa e regime sancionatório, esta Carta prevê também, no seu art.º 6.º, o apoio do Estado na criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e o incentivo na atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas de estatuto de utilidade pública.
Feitas as contas, por um lado, a Carta protege a liberdade de expressão e livre criação, por outro, apoia a criação de órgãos fiscalizadores de índole controladora e sancionatória, aquando da criação e divulgação de informação.
Confusos? Eu também.
Estará o Estado a preparar o caminho para a criação de verdadeiros órgãos de censura à comunicação social sob a veste de entidades públicas, dotadas de poderes para o efeito, baseado no chamado interesse público (que serve para tudo ou quase tudo, quando convém) de espada em punho e lança na mão, contra as fake news?
Não querendo retirar mérito ao combate às notícias falsas, tenho de dizer que esta luta não se ganha pela compressão e limitação de Direitos, Liberdades e Garantias. Alcança-se através da criação de meios e procedimentos que permitam aos cidadãos a identificação das fontes e da permanente educação e informação com verdadeiro direito ao contraditório. Passa também pela definição de regras e premissas capazes de alavancar o sentido crítico e o alcance de um cidadão quando confrontado com uma notícia.
A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital tem um mérito que se afunda num antagonismo entre a liberdade de expressão e a criação de mecanismos de selos de qualidade, e ainda na legitimação das autoridades públicas em dizerem o que é, e o que não é. É um terreno perigoso, cheio de areias movediças e terras (muito) pantanosas. O risco de impacto é muito grande comparado com os meios para os fins definidos. Disposições como estas podem trazer agendas políticas ocultas perversamente perigosas.
Cabe à Entidade Reguladora para a Comunicação criar mecanismos de análise e instrumentos que permitam o verdadeiro pluralismo da informação e o exercício do contraditório. Cabe ao Tribunal Constitucional garantir a conformidade com a Lei Fundamental e avaliar a inconstitucionalidade do normativo, na esperança de podermos continuar a respirar a liberdade de expressão, de Imprensa e criação, sem opressão ou censura e mecanismos de controlo duvidosos.
A verdade está naquilo em que cremos como fidedigno e achamos estar em linha com a realidade. O ser humano tem a capacidade de analisar, escolher e decidir sem prejuízo de a verdade de um poder não ser a verdade de outro poder. Atribuir ao Estado e a quem nele governa, o condão de decidir a verdade é subverter as mais elementares bases do Estado Direito e Estado Democrático, do respeito pela nossa liberdade de consciência e escolha enquanto direitos de todos e para todos, protegidos pela Constituição da República Portuguesa.