Por: Rafael Pedra, Laranjeiro dos Santos & Associados, SP RL
A Organização Mundial de Saúde decretou o estado de pandemia da Covid-19, dessa forma alertando todos os países para o perigo que este vírus representa para a nossa saúde e da facilidade como o mesmo se transmite.
De forma a evitar a propagação do vírus várias medidas foram tomadas como por exemplo: o teletrabalho, a restrição de se deslocar entre concelhos, o isolamento profilático, entre muitas outras.
Uma das medidas mais badaladas no nosso país, instituída pelas duas Regiões Autónomas, consistia no isolamento profilático por um período de 14 dias de qualquer pessoa que chegasse àqueles territórios.
Essa medida foi cumprida sem grandes perturbações, todavia, no passado dia 16 de maio, a Juíz de Instrução Criminal do Tribunal de Ponta Delgada apreciou e deferiu um pedido de habeas corpus apresentado por um cidadão que se encontrava em isolamento profilático, numa unidade hoteleira daquela cidade, desde o momento em que tinha chegado à Ilha de São Miguel.
Como ponto de partida, importa perceber que um habeas corpus é um instituto que se encontra previsto no artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), conferindo o direito a que um Tribunal aprecie uma detenção ou prisão ilegal, sendo que este pedido pode ser apresentado pela pessoa detida/presa ou por qualquer outro cidadão que considere tal privação da liberdade como ilegal.
Assim, o Tribunal considerou que o isolamento profilático imposto ao cidadão que apresentou o habeas corpus consistia numa privação da liberdade pois a mesma decorria em local confinado, sob vigilância das autoridades e sem o consentimento da pessoa em isolamento.
A Região Autónoma dos Açores estabeleceu que o isolamento profilático devia ser feito numa unidade hoteleira e que essa estadia seria custeada pelo Governo Regional caso o cidadão confinado fosse residente daquela Região Autónoma, já no caso dos não residentes tal confinamento em unidade hoteleira seria custeado pelo próprio.
No entender do Tribunal, também aqui há uma violação da Constituição, nomeadamente, do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP.
Por fim, uma vez que as normas que determinam o confinamento obrigatório não prestam a informação dos direitos e mecanismos de reação, ambos constitucionalmente garantidos a quem é privado da sua liberdade, nem, muito menos tal decisão de privação da liberdade ser validada por parte de um tribunal.
Consequentemente, o Tribunal considerou que as normas que estabelecem o confinamento obrigatório violam o princípio do livre acesso aos tribunais previsto no artigo 20.º da CRP, bem como, o já referido direito à liberdade e à informação das razões de detenção ou prisão tal como estabelecido no artigo 27.º do mesmo diploma.
Descritas que estão às inconstitucionalidades da medida aqui discutida, parece-me importante distinguir as diferentes razões apontadas pelo Tribunal que a levaram a concluir pelo acolhimento do pedido de “habeas corpus”.
A proibição de determinação de confinamento obrigatório e de que tal medida apenas poderia emanar da Assembleia da República ou do Governo sustentam-se em critérios objetivos, ao passo que os demais argumentos e conclusões têm por base critérios subjetivos, ou seja, dependem da opinião da pessoa que os vai analisar.
Salvo melhor opinião, não nos parece proporcional que uma pessoa que nem está infetada, nem se suspeita fundadamente que possa estar infetada, seja obrigada a ficar confinada numa unidade hoteleira, especialmente quando a mesma pessoa pode circular pelo resto do território nacional sem ter que se sujeitar a tal confinamento obrigatório. Da mesma forma, a medida em análise não trata todos os cidadãos da mesma forma quando decide que o Governo Regional dos Açores suportará os custos do confinamento obrigatório dos cidadãos nacionais residentes naquela Região Autónoma, mas força os cidadãos nacionais não residentes a suportar esses mesmos custos.
Em jeito de conclusão, resta-me congratular o Tribunal pela decisão tomada, pois apesar dos tempos conturbados que atravessamos, e do risco sério que este vírus constitui para a nossa sociedade, não se pode passar por cima de tudo para conter a propagação do vírus e há que preservar o bom-senso e o respeito pelos demais princípios constitucionalmente garantidos.
Deixando uma pergunta para reflexão: estará o Estado (Central ou Regional) preparado para reagir quanto a ações de responsabilidade civil que no futuro lhe venham a ser dirigidas, por ter de forma (in)devida condicionado a liberdade pessoal e económica dos cidadãos – na Europa já se assiste a um cenário de demanda do Estado pelas medidas adotadas na pandemia – irá Portugal viver o mesmo?