Home / Opinião / A obra musical: direitos e desafios no contexto europeu
Júlia Alves Coutinho
Júlia Alves Coutinho, Agente Oficial de Propriedade Industrial na Inventa International (Foto: divulgação)

A obra musical: direitos e desafios no contexto europeu

Por: Júlia Alves Coutinho, Agente Oficial de Propriedade Industrial na Inventa International

A poucos meses de se completarem dois anos de pandemia, o setor do entretenimento foi, sem dúvida, um dos que mais sofreu o impacto económico negativo nestes tempos de confinamento.

E a indústria musical foi particularmente uma das mais prejudicadas, uma vez que o pagamento de direitos autorais pelo uso de música executada publicamente foi afetado de modo direto e, consequentemente, os compositores, músicos e intérpretes deixaram de receber uma importante parcela das suas fontes de renda, assim como os demais profissionais envolvidos nos ramos da cultura e do entretenimento.

Entre as obras protegidas por direito de autor está a obra musical, a qual é uma das expressões culturais centrais das chamadas “indústrias culturais” ou “indústrias criativas”, sendo as “indústrias culturais” relacionadas ao património cultural e às formas tradicionais de criação e as “indústrias criativas” ligadas a todas as formas de arte e inovação, bem como a geração de lucro e de empregos através da criação de propriedade intelectual.

De acordo com o estudo “Reconstruir a Europa: a economia cultural e criativa antes e depois da Covid-19”, divulgado em janeiro de 2021, as principais atividades das indústrias culturais e criativas (ICC) representaram 4,4% do PIB da União Europeia em termos de volume de negócios total. Com a pandemia, o estudo indica que as ICC tiveram perdas de 31% da sua faturação em 2020 – uma perda acumulada de 199 mil milhões de euros – tendo o setor da música perdas na ordem dos 76%.

A música é uma expressão literária e artística que pode ser oriunda do trabalho de diversos autores, como o letrista, o arranjador e o melodista, podendo o compositor reunir todas ou algumas destas funções, ou também ser advinda de apenas uma pessoa que reúne todas essas habilidades. No processo de criação musical também pode participar o artista intérprete, ou seja, o cantor e/ou o instrumentista e, nesse caso, poderá cumular direitos conexos (originariamente) e também direitos de autor. O direito de autor é composto por faculdades patrimoniais e pessoais, sendo as últimas irrenunciáveis, inalienáveis e imprescritíveis. Um dos direitos pessoais mais importantes é o direito de paternidade, portanto presume-se autor da obra e artista da prestação aquele cujo nome tiver sido indicado como tal na obra ou na cópia autorizada da prestação.

Outro direito pessoal que merece destaque é o direito pessoal do autor de assegurar a genuinidade e a integridade da obra, podendo opor-se à sua destruição, mutilação, deformação ou outra modificação e, de um modo geral, a todo o ato que desvirtue e possa afetar a sua honra e reputação. Paralelamente, ao intérprete também é conferido este direito pessoal, desde que o prejuízo da sua reputação seja objetivo e substancial, não sendo considerada uma infração, nomeadamente, a edição, a dobragem ou a formatação em qualquer meio de comunicação e formato, efetuadas no decurso de uma utilização autorizada pelo artista. No caso das obras musicais, os direitos de paternidade de oposição à modificação da obra são frequentemente infringidos, sendo inúmeros os episódios de plágio noticiados na imprensa.

No âmbito dos direitos patrimoniais, o sistema de direitos autorais prevê duas formas básicas para exploração económica da obra, sendo a vertente institucional representada pelas associações, as quais são mecanismos oficiais de autorização, de arrecadação e de distribuição de direitos e a vertente contratual utilizada pelas partes que almejam definir privadamente as condições de uso e a respetiva remuneração, de acordo com cada caso. Um autor ou artista também se pode beneficiar das duas formas, ao auferir royalties da entidade que arrecada e distribui os direitos de autor, por uma execução pública da sua obra, e ao licenciar determinado uso da sua obra a uma entidade, pública ou privada, para determinada finalidade e, então, receber royalties deste uso específico.

No setor musical, a prática mais habitual é a gestão coletiva dos direitos de autor e dos direitos conexos, uma vez que as obras podem ser executadas das mais diferentes formas e lugares, desde plataformas de streaming até mesmo lojas e restaurantes, não sendo viável ao compositor, intérprete ou produtor gerir sozinho os seus direitos.

Conforme falado anteriormente, pode uma mesma pessoa cumular direitos de autor e direitos conexos e, portanto, receber proventos da associação que gere os direitos dos autores e da associação que gere os direitos dos artistas intérpretes. E ainda que não haja a cumulação de direitos, o recolhimento dos direitos dos autores não abrange o recolhimento dos direitos dos artistas e dos produtores de fonogramas, sendo devidas as duas remunerações, usualmente chamadas de licenças.

Em Portugal, a associação responsável pela gestão coletiva do direito de autor é a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), portanto a declaração de uma obra na SPA permite, nomeadamente, a sua gestão, a defesa (extrajudicial e/ou judicial) dos direitos patrimoniais e pessoais dos autores que a SPA representa e a cobrança e distribuição dos direitos gerados pela utilização da obra junto dos mais diversos utilizadores, nacionais ou estrangeiros.

A SPA estabelece condições de licenciamento consoante o tipo de utilização da obra, sendo o mais comum, no caso da música, a execução pública que “abrange todas as audições e execuções tornadas audíveis ao público em qualquer lugar, quaisquer que sejam os meios e formas utilizadas, quer estes meios sejam já conhecidos e utilizados, quer venham a ser posteriormente descobertos e utilizados”. Paralelamente, em Portugal, a PassMúsica atua como o serviço de licenciamento conjunto da AUDIOGEST, associação que representa os produtores das gravações musicais, e da GDA, associação que representa os artistas intérpretes, concedendo, assim, a autorização para a execução pública de determinada música em nome destes titulares de direitos conexos.

A comunicação de obras através do streaming, sendo a live um tipo de streaming (simulcasting), também é uma forma de execução pública de obra e, como tal, também depende de autorização dos titulares de direitos das obras utilizadas, distinguindo-se a exploração por meio da Internet das outras formas de uso de obras musicais e fonogramas apenas pelo modo de transmissão. Nesse sentido, condições de licenciamento de novas tecnologias também foram criadas pelas associações acima referidas. Plataformas digitais, como o Youtube e o Instagram, ganharam ainda mais força no contexto da pandemia, fazendo com que os meios tradicionais como a televisão perdessem expressividade e os artistas assumissem o papel principal, a partir da disponibilização de conteúdo aos fãs mais intensificada, criações de entrevistas, webséries e pequenos vídeos a fim de não perder a relação com o público.

Recentemente, a SPA divulgou que, apesar das dificuldades impostas pela situação pandémica que ainda existe, em junho de 2021 foi distribuído aos autores um valor superior em 10% em relação à distribuição homóloga efetuada em junho de 2020, tendo concluído que a música ao vivo tem sido a área mais afetada pelas restrições impostas e que o setor digital continua a crescer e a manter a sua regularidade em matéria de distribuição.

Em relação à fase pós-pandemia, o estudo “Reconstruir a Europa: a economia cultural e criativa antes e depois da Covid-19”, mencionado inicialmente, conclui que o setor criativo deve ser um dos principais focos de recuperação da Europa e identifica os desafios de financiar, capacitar e alavancar como os desafios prioritários para a recuperação e o crescimento da economia criativa.

O estudo recomenda a combinação do financiamento público e a promoção do investimento privado em negócios culturais e criativos, a melhoria e a implementação do quadro jurídico da União Europeia sobre as normas de direitos de autor e de direitos conexos no mercado digital, o enforcement dos direitos autorais, a justa remuneração de todos os players das ICC e a criação de programas de estudos e de empreendedorismo voltados aos talentos individuais e coletivos nestas áreas.