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Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (Foto: Divulgação)

Mulheres: sexo fraco ou a padeira de Aljubarrota? A igualdade de género e as organizações

Por: Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Em 2020, o Fórum Económico Mundial, no Relatório Mundial sobre a Desigualdade de Género, estimava necessitarmos de 99,5 anos para alcançar a paridade de género homens e mulheres. Os dados mais recentes do mesmo relatório, em 2022, considerando 146 países, apontam para um retrocesso significativo e um novo tempo estimado de 132 anos. Tal representa pelo menos uma geração inteira para recuperar os tempos de regressão em matéria de igualdade de género, em consequência dos primeiros dois anos de pandemia. Uma sociedade relançada para o Espaço 2154!

Na minha família, numerosa e com predominância do género feminino ao longo de gerações, sempre se debateu e discutiu fervorosamente os direitos das mulheres e a (des)igualdade de género: lutou-se pela participação cívica e pelo direito ao voto (já agora, na política e nas decisões que envolvem a família), pelas possibilidades de ler, escrever e aceder a um curso superior, de aceder a um emprego remunerado, de conduzir, de sentar no lugar de trás na diagonal visível no espelho retrovisor pelo homem condutor, de ficar com a melhor parte da refeição que se distribuía, de entrar num café…

Tantos exemplos mais eu teria, contados e/ou vividos, como a luta por usar as calças que a minha tia enviava de Inglaterra para onde tinha sido “enviada” (na minha família diz-se “mandada”, por referência à época). Tinha sido “mandada” para fazer as lides de uma casa de família e ser também ama das crianças, e depois enviar dinheiro para a família numerosa que aguardava em Portugal, sem guardar qualquer moeda para si. Lembrei-me deste exemplo, pelo oportuno momento do mundial de futebol que estamos a viver. Isto porque à minha família Ramalho saiu o tiro pela culatra, e a minha tia, a quem ainda hoje chamamos “general”, pela postura que rapidamente absorveu do rigor da cultura inglesa da época e, talvez pela facilidade com que aprendeu a falar inglês, acabou por ser “requisitada” para um programa diário dedicado aos jogos da Copa do Mundo de 1966, em Inglaterra, para transmitir 20 minutos de notícias jornalísticas de Manchester para Portugal, em português.

Recordo bem esta narrativa familiar porque muitas vezes senti o agridoce da (re)leitura dos jornais recortados, guardados e moídos pelo tempo, que davam conta das sete “pretty girls” ou “bevy of beauties” de sete diferentes países que estavam a fazer este trabalho. Por um lado, sentia-me orgulhosa da minha tia que tanto me influenciou pessoal e profissionalmente. Por outro, continuava estarrecida com o primeiro parágrafo de um jornal português, cujo título foi: “Não são só eles dentro do campo… uma portuguesinha joga também na TV…”. E inicia: “Manchester – Não são só os Eusébios, os José Carlos e os Vicentes… A presença portuguesa em Manchester, nesta altura em que a ‘World Cup’ tomou conta da cidade, mete também, como é de boa tradição, o chamado ‘sexo fraco’ – essa deliciosa metade do mundo que, de rolo da massa em riste, nos obriga, todos os dias, a sorrir mesmo que isso, entre duas nódoas negras, faça doer…”.

Estou certa de que esta segunda parte de palavras escritas podem ter várias interpretações, desde focada no embate dos jogadores, nas derrotas sentidas pelos espectadores, e até na força do então designado “sexo fraco” quando mais adiante o jornalista acrescenta: “…nossa portuguesinha, padeira de Aljubarrota do éter, sem pá, mas com microfone…”. O que é certo é que esta narrativa (jornalística) nos transportava sistematicamente para outra narrativa (familiar) sobre as vivências de violência, que castravam e castigavam os escassos vislumbres de liberdade, de expressão, e de vivência dos direitos das mulheres na minha família (e em tantas outras)! Falamos de violência doméstica, psicológica, económica e social, ainda hoje exercida e experienciada muitas vezes sem ser reconhecida, porque tantas vezes banalizada e aceite socialmente.

Tratava-se (e trata-se) de uma espécie de organização económica e política da sociedade. Uma violência estrutural, na sua maioria contra as mulheres, gerada pela própria estrutura e organização social. Assente na desigualdade, na discriminação e na injustiça, que pode não pretender infringir sofrimento, mas que resulta numa exploração económica, na ausência de proteção e da garantia dos direitos das mulheres, como o acesso à saúde (física e psicológica), ao emprego (remunerado) ou à educação.

A 24 de outubro de 1975, ano em que a ONU declarou o ano das mulheres, as mulheres islandesas decretaram um “Dia de Folga”, uma greve em que nenhuma mulher islandesa faria o que quer que fosse, para que os homens e as organizações pudessem ter a oportunidade de valorizar o seu trabalho diário “invisível” (mesmo que bem na frente dos seus olhos). Nem tarefas domésticas, nem cuidados às crianças ou a terceiros a seu cargo, nem trabalho remunerado (nos casos em que este acontecia). Foi no ano seguinte a este acontecimento “disruptivo” que a Islândia aprovou a Lei da Igualdade de Género, penalizando a discriminação de género nas escolas e nos locais de trabalho.

Contudo, hoje, continua a ser uma forma de violência o tempo de trabalho não remunerado (por exemplo, o tempo gasto com tarefas domésticas), ou a combinação de tempo de trabalho não remunerado com tempo de trabalho remunerado, que é superior para as mulheres. Bem como as dificuldades de acesso das mulheres a posições mais elevadas e mais bem remuneradas (muitas vezes agravadas pelo trabalho a tempo parcial ou por horários de trabalho mais flexíveis, importantes, por exemplo, nos regimes de partilha da parentalidade ou da conciliação vida pessoal e profissional).

“Hoje, continua a ser uma forma de violência o tempo de trabalho não remunerado (por exemplo, o tempo gasto com tarefas domésticas), ou a combinação de tempo de trabalho não remunerado com tempo de trabalho remunerado, que é superior para as mulheres.”

É comum as mulheres terem um emprego abaixo das suas competências, apesar do contraste com o crescimento do número de mulheres com ensino superior, bem como com a participação feminina em cursos tradicionalmente masculinos e dotados de prestígio social (que em 2018, de acordo com a FFMS, destacava os progressos das mulheres portuguesas face às europeias). E é comum os homens ganharem substancialmente mais do que as mulheres nos grupos dos representantes do poder legislativo, de órgãos executivos, dirigentes e gestores executivos, e na generalidade das categorias profissionais, bem como estarem nesses cargos mais representado o género masculino.

São, também, as mulheres que apresentam vínculos contratuais mais precários, maior estagnação na carreira (e nos salários), em particular quando têm filhos pequenos, bem como as que apresentam mais risco e maiores níveis de pobreza na velhice (para além de que tendem a viver mais tempo e com menos saúde do que os homens).

Todo este contexto de desigualdade afeta a saúde física e a saúde mental das mulheres, o que acompanha com maiores níveis de stress das mulheres nos locais de trabalho, também associado à maior presença de mulheres trabalhadoras nos setores de educação, saúde e assistência social.

Melhores políticas, políticas mais inclusivas e políticas com mais qualidade, equidade e ciência psicológica nos setores do emprego, educação, saúde, natalidade, parentalidade, e no próprio setor político, são necessárias. Do mesmo modo que mais literacia de género e literacia em saúde psicológica são uma forma de combate à violência psicológica, económica e social contra as mulheres e de eliminação das desigualdades entre homens e mulheres.

Com todos estes argumentos não pretendo o queixume. Antes informar que o ponto de partida das mulheres na sociedade é diferente. Por isso, é necessário reconhecer essa diferença de partida no caminho para a equidade e igualdade de género. Tem-se feito das tripas coração para reparar situações de violência económica e repor a paridade de género nas organizações, com mais inclusão das mulheres em processos de decisão (e espero que muito rapidamente não precisemos de impor um sistema de quotas). Mas não podemos e não devemos fazê-lo sem os homens, caso contrário não falaríamos em igualdade entre homens e mulheres. E os benefícios serão também para ambos, para o bem comum e para a prosperidade das nações.

Lembremos que há um caminho já percorrido. Muitos foram os homens e muitas foram as mulheres que para ele contribuíram, tendo feito História na conquista de direitos para as mulheres. Muitos feitos e figuras aqui poderia relembrar, mas prefiro ir buscar o exemplo que me é mais familiar, o da minha tia, também apelidada da lendária Padeirinha de Aljubarrota, que lhe assenta bem, na medida em que sempre lutou pelos direitos das mulheres em organizações como a família, o trabalho e a sociedade, dando exemplo, como qualquer um de nós, mulher ou homem, pode e sabe dar.