Por: Rafael Pedra, advogado na LS Advogados, RL
O estado de emergência foi decretado no nosso país com efeitos desde as 00:00 do dia 19 de março de 2020 e prolongar-se-á até às 23:59 do dia 02 de abril de 2020.
O que é, então, o estado de emergência?
O estado de emergência está regulado na Constituição da República Portuguesa, mais concretamente no artigo 19.º do referido diploma legal, sendo que o próprio enunciado do artigo (Suspensão de direitos) nos diz já muito sobre o que é o estado de emergência.
São três as razões que podem estar na base da declaração do estado de emergência:
- Agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras;
- Grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional; ou,
- Calamidade pública.
O estado de emergência permite que sejam suspensos alguns direitos, liberdades e garantias em prol do combate à causa que conduziu à declaração do referido estado. Os direitos, liberdade e garantias que venham a ser suspensos devem estar especificados e este estado de emergência, apesar de poder ser renovado, não pode ser declarado por um período superior a 15 dias.
Há certos direitos que permanecem salvaguardados e intocáveis durante este período, são eles o direito à vida, à integridade e identidade pessoal, a capacidade civil e à cidadania, à não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e, por fim, à liberdade de consciência e de religião.
Se as razões que conduziram ao estado de emergência se agravarem pode ainda ser declarado o estado de sítio.
Estamos apenas a ver ser declarado o estado de emergência pela segunda vez na nossa história constitucional, sendo que a primeira remonta a novembro de 1975.
No estado de emergência a vigorar entre os dias 19 de março e 2 de abril foram então suspensos alguns direitos. Os mais importantes são:
- Direito de circulação – exceptuando as deslocações:
– relacionadas com a profissão que não seja passível de fazer em regime de teletrabalho ou para recolher materiais que permitam esse teletrabalho;
– para aquisição de bens e serviços;
– por motivos de saúde;
– especial urgência, designadamente transporte de vítimas de violência domésticas e de animais carenciados de assistência veterinária urgente;
– para auxílio de pessoas especialmente vulneráveis (idosos, pessoas com deficiência, filhos, progenitores ou outros dependentes);
– por razões familiares imperativas, designadamente, em cumprimento do estabelecido em sede de regulação dos poderes parentais;
– a agências bancárias;
– de curta duração para actividade física desde que feitas individualmente;
– para passeio dos animais de companhia; e,
– por quem tenha livre-trânsito no efectivo cumprimento das suas funções;
– por pessoal das missões diplomáticas;
– para retorno ao domicílio; e
– outras feitas por motivo de força maior que possa ser devidamente justificado.
- Imposição do isolamento obrigatório, sob pena da prática do crime de desobediência.
- Sempre que possível as empresas devem recorrer ao teletrabalho;
- Determinar que todas as instalações e estabelecimentos não essenciais devem ser encerradas;
- São considerados instaçações e estabelecimentos essenciais:
– Unidades de saúde;
– Comércio a retalho de bens alimentares;
– Comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis e motociclos;
– Comércio de combustível para veículos a motor;
– Comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos;
– Comércio a retalho de equipamentos de telecomunicações;
– Comércio a retalho de produtos farmacêuticos, ortopédicos e médicos;
– Comércio a retalho de animais de companhia e respectivos alimentos;
– Prestação de serviços de entrega ao domicílio, entidades bancárias, serviços de segurança, confecção de refeições, limpeza, serviços públicos essenciais e funerárias;
Entre outros de menor importância.
As instalações acima referidas têm a obrigação de manutenção em funcionamento, e ao contrário do previamente vinculado, nesta primeira fase as pessoas com idade superior a 65 anos não terão direito a aceder a estes espaços em exclusivo nas duas primeiras horas do horário de funcionamento.
Nos estabelecimentos que ficarem abertos não podem ser consumidos produtos no seu interior, devendo as pessoas manter uma distância mínima de dois metros entre elas.
Vistas as obrigações que impendem sobre a sociedade civil no âmbito deste estado de emergência importa esclarecer qual a cominação para quem não cumprir as supra elencadas obrigações.
A cominação é, nada mais nada menos, que a prática do crime de desobediência, crime esse que já tinha aparecido no meios de comunicação social aquando das declarações do Ministro de Administração Interna, Eduardo Cabrita.
Afirmou o ministro que o desrespeito de determinações das forças de segurança no âmbito do Estado de alerta para fazer face à Covid-19 seria considerado um crime de desobediência. As declarações do ministro em causa trouxeram este crime para a comunicação social sem que fosse acompanhado de qualquer informação sobre as normas em que se baseou tal declaração, nem as penas em que o prevaricador poderá incorrer.
Fora desta situação de estado de emergência, o desrespeito de determinações das forças de segurança pode consistir efetivamente o crime de desobediência, mas para que tal ocorra é necessário que essa determinação seja acompanhada de cominação de que caso o cidadão desobedeça incorre na prática desse crime ou que exista uma disposição legal que comime, nessa situação, a desobediência como crime de desobediência.
Assim, não se trata de um crime imediato, pela simples infração dos deveres impostos aos cidadãos.
No entanto, e uma vez declarado o estado de emergência, as medidas acima enunciadas tornam-se automaticamente exigíveis e, se infringidas, aí sim se verificará o crime, dado que a comunicação legal exigida consta de lei especial – in caso a lei que regulamenta o estado de emergência e da Lei de Bases da Protecção Civil que o ministro da Administração Interna ativou até ao dia 9 de abril.
Vejamos o que é necessário ocorrer para que determinada conduta seja tida como desobediência e crime, à luz da lei, mais concretamente, o artigo 348.º, do Código Penal:
1 – Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 – A pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição de desobediência qualificada.
Esta é a norma legal aplicável sempre que esteja em causa o crime de desobediência e cuja aplicação resulta directamente da norma constante da Lei de Bases da Protecção Civil que o ministro da Administração Interna ativou até ao dia 9 de abril e que tem a seguinte disposição:
Lei de Bases da Protecção Civil
Artigo 6.º (Deveres gerais e especiais)
(….)
4 – A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respectivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.
Pelo exposto, podemos concluir que qualquer cidadão que até ao dia 9 de abril viole uma determinação de uma entidade competente feita no âmbito do estado de alerta (ou outro que venha entretanto a ser declarado) declarado para fazer face à Covid-19 pode incorrer na prática de um crime de desobediência simples com a moldura penal agravada em um terço, ou seja, a punição poderá ir até 1 ano e 4 meses de pena de prisão ou até 160 dias de pena de multa.
Artigo atualizado às 09.40 horas de 20/03/2020